Quando o excesso encontra a ferida
Superdotação e trauma: uma combinação complexa e invisível
Heloisa Titotto
8/14/20252 min read
Falar de superdotação costuma evocar imagens de cérebros brilhantes, altas notas e habilidades excepcionais. Mas a vida real é bem mais complexa. O adulto superdotado não vive apenas de conquistas intelectuais; ele também carrega um sistema nervoso afinado, uma sensibilidade acima da média e uma percepção aguda do mundo. E é justamente nessa equação que o trauma encontra terreno fértil.
O trauma, como já vimos, não é só o que acontece, mas o que não conseguimos processar. E, no caso do superdotado, o “processador” é superpotente… mas também superexigente. Imagine um computador de última geração que, por ter mais capacidade, abre dez janelas ao mesmo tempo. Ele até pode dar conta, mas quando trava, trava grande. O cérebro superdotado, com sua intensidade e sua alta conectividade, tem a mesma característica: absorve muita informação, sente em alta definição, reflete em múltiplas camadas — e, quando a experiência é dolorosa, isso pode se cristalizar de maneira ainda mais impactante.
Além disso, o superdotado não sofre apenas pelo que viveu, mas também pelo que percebeu nos detalhes que outros nem notaram. Uma expressão de desaprovação, uma contradição não dita, uma injustiça silenciosa, tudo isso pode se registrar com força no seu sistema, acumulando memórias congeladas. Não é drama; é neurobiologia somada à alta sensibilidade.
Outro ponto delicado é que muitos superdotados crescem ouvindo frases como “você é inteligente demais para sofrer com isso” ou “não foi nada, não exagere”. O resultado? O trauma não é apenas o evento, mas também o sentimento de invalidação. O adulto superdotado pode acabar desenvolvendo a ideia de que sua dor não é legítima, o que dificulta ainda mais o pedido de ajuda.
E aqui entra uma ironia: justamente por pensar rápido e com profundidade, ele cria narrativas para explicar o trauma, mas isso não significa que o cérebro tenha processado a memória. É como escrever um prefácio sofisticado para um livro que ainda não foi lido até o fim. O conteúdo bruto continua lá, pedindo para ser elaborado.
O cérebro superdotado, com sua alta capacidade de associação, às vezes precisa de ajuda extra para destravar a digestão emocional. A Terapia EMDR permite que aquela experiência congelada — a crítica devastadora, a solidão precoce, a sensação de inadequação — seja integrada de forma saudável. A lembrança não some, mas se torna parte da história sem ferir o presente.
O trauma em superdotados não é apenas “mais do mesmo”: é o impacto do excesso. Excesso de sentir, de perceber, de conectar. É como viver com sensores sempre ligados em alta voltagem. Quando algo machuca, a ferida é profunda não porque a pessoa é frágil, mas porque o sistema é sofisticado.
Essa terapeuta que vos escreve, felizmente, não se assusta com esse excesso: ajuda a organizar a bagunça e devolver ao superdotado a liberdade de usar sua potência para o que realmente importa: viver de forma plena, criativa e significativa.
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